quarta-feira, 11 de agosto de 2010

      


Merdock era um cão singular
e deu origem, em Faro, a uma extraordinária
manifestação de solidariedade que culminou na sua libertação.
Aqui se relembramos factos e as personagens envolvidas.
                                                                                                                                                                            

Blog O cão Merdock.



Diziam uns moços que às vezes apareciam junto ao Liceu, que o Merdock era seu conterrâneo. Segundo eles, o cachorro teria sido nascido e criado nas Campinas, filho de mãe perdigueira e pai incógnito, provavelmente rafeiro – a avaliar pelas características físicas que o filho patenteava.
Foi a progenitora quem lhe ministrou a instrução primária, as primeiras letras, por assim dizer. Extremosa mãe, como todas as mães, ensinou-o a coçar-se e a ganir, a estar sempre atento e a esquivar-se, a ronar e a latir (mais tarde, a ladrar, mas só quando fosse necessário…) e a caçar.
A tenra infância do canito foi igual à de tantos outros – sem grandes sobressaltos, nem grandes mistérios. Apenas o que a Mãe Natureza vai trazendo todos os dias, aos jovens. Conheceu os animais domésticos e os répteis, aprendeu a distinguir os insectos inócuos, dos irritantes, maçadores, e invejou os pássaros. Várias tentativas fez para alcançá-los, procurando erguer-se nos ares, até ao céu que não entendia bem, tanto alegre e fagueiro, quanto brumoso e triste.
Ainda muito novo, se viu confrontado com a fatalidade da despedida, apercebendo-se de que todos os irmãos tinham partido para outros lugares, outras vidas, outras lides.
E ficou só, com a mãe. Não percebeu porquê, mas – aventamos nós –, talvez o camponês seu patrão, desde logo tivesse visto nele o melhor sucessor para a cadela, já a caminho da irredutível velhice.
Um dia, já crescidote, aventurou-se por uma estrada por onde via seguirem carros de besta, gente montada em mulas ou burros, ou a pé, e que sempre reapareciam pelo mesmo caminho poeirento e cheio de pedras, algum tempo depois. Onde iam? E o que é que lá iam buscar, ou fazer?
Andou um bom bocado, até ver desaparecer o monte onde nascera. E embora com algum temor pelo singular percurso, que lhe trazia curiosas mudanças ao habitual dos dias, continuou a sua caminhada. Não sabia por onde ia, muito menos para onde ia. Mas havia qualquer coisa secreta que o fazia avançar, à descoberta de não sabia quê.
O fim de muito caminhar, chegou às portas da cidade.
.
Chegara à cidade, quase sem o saber, apenas na ânsia de desvendar um caminho novo, por onde nunca fora; e com que nunca ao menos ousara sonhar. Entrara no desconhecido. E pensou, de tudo quanto via, que talvez aí viesse a ter uma vida mais desenfastiante do que a que sabia lhe estar destinada, no monte onde nascera. A velha mãe mostrava-se cansada, seria ele a tomar o seu lugar, quando ela não prestasse para nada.
Não é que se sentisse subalternizado, ou menosprezado. Sentia-lhe ainda o mesmo afecto, de quando o despertara as primeiras realidades da vida. Mas antevia um futuro igual ao dela, sem mistério e sem glória, sempre igual, pelos dias e pelas noites.
A única coisa que sempre o transcendia em alegria e emoção, eram os dias caça. Aí sentia a plenitude da existência, uma razão forte para a vida, um inexcedível júbilo.
Mas, infelizmente, esses dias de euforia e alvoroço eram poucos, cada vez mais raros, à medida que o patrão, ele próprio, caminhava também, como a mãe, para a decrepitude.
Por isso se aventurara a ver se via como seriam outros lugares e outras gentes, porventura outras balbúrdias ainda mais avassaladoras do que os dias de caça, com a mãe e o dono, por montes e vales.
No entanto, às portas da cidade, pensou que não teria condições para ficar por ali. De resto, não conhecia ninguém e, na verdade, dos que por ali andavam, nenhum lhe prestou a mínima atenção.
Ia voltar para trás, pelo mesmo caminho por onde viera, quando, de repente, começou a ouvir qualquer coisa, uns sons que nunca tinha ouvido, vindos duma rua lateral. Instintivamente dobrou a esquina e deu com um rapaz a esfregar os beiços por uma espécie de tubo, donde pareciam sair aqueles sons. Sentiu-se maravilhado. Tudo quanto até ali ouvira, eram os assobios do vento, o estrepitar das águas pela levada que vinha do tanque, o rumorejar das árvores, o cacarejar monótono das galinhas ou de algum pintassilgo trinando no silvedo, ou nas romãzeiras.
O rapaz tocava uma música dolente, eivada de entoações profundas, com requebros de emoção e afecto. Era um fado do Carlos Ramos, muito em voga, nesses tempos:

...
Não venhas tarde...diz-me ela com carinho

Sentiu-se quase entristecer, o coração a bater de emoção. Mas também sentia os olhos a se revigorarem de alvoroço e agitação. Como era diferente, a vida, naqueles lugares!
Foi então que o rapaz se pôs a soprar uns sons muito diferentes, joviais, prazenteiros, que lhe davam vontade de os repetir com ele, e com ele comungar da mesma alegria.

...
Cantiga da rua
...nem minha nem tua
...não é de ninguém…

As dúvidas dissiparam-se-lhe.
Talvez assim, pudesse alcançar os pássaros e voar com eles, pelos céus.

Decidiu ficar.



Postado em maio de 2007, por Vieira Calado  
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Para saber mais desta linda história visite: 
http://merdock-litoral.blogspot.com/